sábado, 16 de janeiro de 2010

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Câncer, pecado, culpa e castigo.

Algumas semanas depois de me confirmarem o diagnóstico de um câncer linfático no mesentério, recebi de alguém muito próximo, querido, um e-mail - entre tantos outros de solidariedade e de apoio - muito bem intencionado, sem dúvida. Era um desses arquivos PPS ou PPT que apelam para o sentimentalismo barato, que as pessoas recebem e encaminham, às vezes distraidamente, e que insistem em atravancar nossas caixas postais eletrônicas: COMO EVITAR A DOENÇA.

Repleto de preceitos moralistas e pretensamente religiosos, belas fotos de flores, paisagens paradisíacas, imagens de santos prostrados, velas e velhos e óbvios conselhos saudáveis de bem viver conjugados como fórmulas milagrosas, apresentava-se como uma panacéia universal preventiva e infalível a ser aplicada indiscriminadamente a qualquer indivíduo, em qualquer situação para conjurar os riscos e evitar qualquer tipo de enfermidade.

Apesar de suas duvidosas boas intenções, ele me encontrou fragilizado e de certa forma conseguiu despertar em mim um vago sentimento de culpa, quase inconsciente, algo doentio, como se me tivesse subitamente revelado qualquer coisa que me tivesse passado despercebida até então. Na verdade, ranços de uma formação religiosa conservadora e parcialmente preconceituosa.

O moralismo religioso

A noção do pecado associado ao câncer é antiga na maioria das sociedades de cultura ocidental-cristã, podendo despertar sentimento de culpa e assim causar, nas mentalidades mais simples, ainda mais angustia e sofrimento aos infelizes portadores desta enfermidade. E persiste, por incrível que possa parecer, até os nossos dias, mesmo com os progressos da ciência médica no campo da oncologia. Segundo esta noção o pecado é um câncer na vida do homem, que aos poucos o consome e conduz o pecador irremediavelmente para a morte.

Estas meninas são Adna e Jorlay, a indiazinha de etnia Ticuna. Adna vem de fazer um TMO (transplante de medula óssea) autógeno, em São Paulo; Jorlay é minha parceira de químio no Hemoam. Ambas não têm nem oito anos e lutam contra a leucemia, um tipo de câncer sanguíneo. - Qual o pecado delas?

A moralidade pervertida dos teólogos cristãos da Idade Média – atuando sobre as mentes permeáveis dos fiéis ignorantes e supersticiosos – não teve pudores em se utilizar destas “verdades canônicas” para tentar dominar, pelo medo e pelo mito o que julgava ser o pecado da “sensualidade sacrílega” e sujeitar o povo simples, ameaçando-o de pagar com a sífilis, o cancro e a lepra a destemperança do corpo e a falta de virtude do espírito, enquanto os Papas que se sucediam no Trono de Avignon, na França, dissipavam suas energias em orgias homéricas na companhia dos rapazolas e das cortezãs. Quantos deles não teriam morrido de câncer ou de sífilis, não é mesmo?

Não existem doenças mais estigmatizantes que aquelas mencionadas na Bíblia. E se o câncer já fosse conhecido como tal na época em que ela foi escrita, certamente apareceria entre os flagelos enviados contra os pecadores em algumas de suas passagens, como a sífilis e a hanseníase. É inquestionável a contribuição que essa analogia perniciosa e recorrente, que associa pecado, castigo e doença tem dado historicamente para que estas enfermidades estejam entre as mais temidas e discriminadas.

E, no entanto, ironicamente, o mesmo parece não se aplicar aos santos do catolicismo, que, em sua busca fervorosa pela temperança, pelo fortalecimento das virtudes e da fé, consideram sempre as enfermidades, sejam elas quais forem como insignes favores: “Se conhecêssemos o tesouro nelas oculto, aceitá-las-íamos como favores” (São Vicente de Paulo).

São Francisco de Assis estava certa vez acometido de fortes dores. O irmão assistente disse-lhe, compadecido: “Pai, pedi a Deus que vos trate com mais brandura, porque a sua mão parece pesar demais sobre vós”. Ouvindo isto, o santo levantou-se do leito, pôs-se de joelhos, beijou a terra, e, dando graças a Deus, protestou dizendo serem as enfermidades benefícios inapreciáveis. Os exemplos de exaltação das virtudes da doença são demais copiosos e seria impossível colocar ao menos uma parte deles aqui.

Educado no seio de família católica, tomei aulas de Catecismo e fiz a Primeira Comunhão ainda entrando na adolescência. Aos quatorze anos despertou meu interesse pela Bíblia e fiz então minha primeira leitura completa do Velho e do Novo Testamento.

Freqüentava a missa aos domingos na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Belém, mas nunca consegui compreender direito o conceito de pecado tal como a doutrina católico-cristã conservadora ainda inculcava na mente de seus seguidores. Ele sempre me pareceu muito injusto e conflitante com tudo o que havia aprendido de belo, justo e sensato na leitura do Livro Sagrado.
Como conseguir compreender e aceitar, por exemplo, e sem ser injusto, o câncer de Adna e de Jorlay - essas duas meninas inocentes que aqui tomei ao acaso apenas como representantes de milhares de outras crianças que padecem dessa enfermidade - como uma forma severa de punição ou purgação de pecados abomináveis por elas cometidos?

Ao dispensarmos a Adna e a Jorlay o preconceito que se traduz em fria indiferença, discriminação, comiseração afetada, desprezo ou até o escárnio que muitas vezes, inconscientes, acompanham esta percepção absurda e distorcida que associa câncer, pecado, culpa e castigo, por grande parte dos católicos mais conservadores, não estaríamos, nós, a nosso turno, agindo como os verdadeiros agentes executores, os algozes desta punição “divina”? E por que razão, então, se “pecadoras”, não experimentariam elas o mínimo sentimento de culpa por serem portadoras de tal enfermidade?

A explicação é justamente a inocência delas. É que Adna e Jorlay, não tendo ainda desenvolvido que de forma incipiente a capacidade de distinguir entre os conceitos relativos de Bem e de Mal, de Certo e de Errado, simplesmente não se podem sentir culpadas em relação a algo que ainda não estão plenamente aptas para classificar segundo uma escala pessoal de valores morais, religiosos e éticos que a curta trajetória de suas vidas até aqui não lhes deu ainda o tempo necessário, nem o discernimento dialético para elaborar.

E, por conta disso, elas não podem, racionalmente, e nem devem ser culpadas nem por seus pensamentos, nem por suas palavras, nem por seus atos, pois são inimputáveis, até a relativa justiça dos homens o admite. E, se crescerem e forem educadas no ambiente saudável de uma sociedade evoluída culturalmente, nunca se sentirão culpadas por estar doentes, qualquer que seja a doença.

O Peregrino

A dor da perda de meu pai no início dos anos 80 aumentou minha necessidade de buscar compreender minimamente o mistério primordial que nos abisma nos mais recônditos e insondáveis vãos do nosso Ser – Aquilo que intuo como a Causa de todas as Causas. E com o passar dos anos me surgiu o interesse pelo estudo eclético das religiões comparadas e comecei a me enveredar no vasto cipoal hermético da literatura religiosa e filosófica do Oriente e nos sistemas religiosos, judaico e muçulmano. Fui atraído também pelo Espiritualismo, de Alan Kardec, e pela Teosofia, principalmente a Cosmogênese e a Antropogênese esotéricas.

Depois me voltei para as origens da religião cristã, o chamado Cristianismo Primitivo, cultuado entre os Essênios e onde Joshua, (Jesus), o Cristo, desabrochou o lírio de amor e de esperança para a humanidade, do botão que trazia potencializado dentro de si, para dispersar suas pétalas perfumadas de sabedoria pelo mundo, sementes de fraternidade, de compaixão e de harmonia entre os homens.

Continuo buscando até hoje e confesso que continuo não sabendo muito mais do que o pouco que sabia no início. Pois nesta busca, cada porta ao fim de cada longo corredor nos confronta com centenas de novas portas ao fim de novos e intermináveis corredores. E assim, sucessivamente, em progressão geométrica, as portas e os corredores se multiplicam vertiginosamente ao infinito a cada nova porta que conseguimos a muito custo alcançar, e depois abrir a duras penas com muito esforço de nosso pobre e limitado mental concreto.

Mas aprendi que AO MESMO TEMPO EM QUE NÃO SOMOS NADA SOMOS TUDO, PORQUE CADA UM DE NÓS CARREGA INTERNAMENTE A CENTELHA DIVINA. Que Deus não é alienação para o ser humano, ao contrário, é sua plena realização e salvação. Aprendi que a inteligência, a razão e o livre arbítrio, em contraposição à fé cega e dogmática são dons divinos que nos proporcionam os meios e os méritos para conseguirmos a evolução intelectual e mental para um estado de consciência coletiva, cósmica, que supere o egoísmo da consciência limitada pelos valores individualistas.
Aprendi que se colocando como centro da própria vida e se aprisionando pelos liames do materialismo, é que o homem se torna injusto, se aliena e se destrói em absurdo para si mesmo no fechamento do seu ego. Que não encontrando tempo para dedicar ao seu próximo, ao seu irmão, ao seu semelhante, o homem não estará encontrando tempo para si mesmo, pois fazemos, todos, parte de uma unidade indivisível em Deus.

E que o homem só encontra sua verdadeira identidade, sua própria consistência e o sentido de sua existência em Deus, que ele, em seu estágio evolutivo atual ainda pouco mais que embrionário pode apenas intuir, nada mais que isso.

O ponto de mutação

Não aprendi um pouco de Probabilidade nos meus tempos de universidade para ter a presunção idiota de me colocar impossivelmente, em detrimento de meus semelhantes, à margem das estatísticas que antecipam as mazelas deste mundo.

A mim me basta confiar na lei natural de Ação e Reação, que é a mesma que diz que se plantarmos feijão não poderemos colher arroz, e a qual os orientais chamam de Lei de Karma. Ela me parece muito mais justa que a noção simplória do pecado.

Consciente das deficiências inerentes à minha condição humana, estou infinitamente distante de ser um santo, mas também não me sinto nem tão pecador, nem tão culpado, muito menos punido. Antes, sinto que tenho uma oportunidade ímpar de me salvar da mediocridade, de sair do mesmismo, da inércia existencial e me renovar, me inquietar, reavaliar minha condição humana. De ajudar e de me deixar ser ajudado.

De olhar e perceber as maravilhas deste mundo, mas também a dor e o sofrimento sem me tornar insensível a eles.

De tentar me distinguir com humildade na luta honrosa pelos valores maiores da Vida e pela continuidade do amor e do respeito recíprocos pelo meu próximo. Isso é pouco?

1 Comentário:

Sane Almeida disse...

Nossa, que textão! rs
Sou Crista, fui criada na adventista, na adolescencia me desviei e voltei há 10 anos, mas caí numa pentecostes. Na verdade não me adaptei até hoje com determinados tipos de comportamento.
Eu nunca aceitei determinados tipos de pregação, de reações...
Leio a bíblia e esta é minha religião, DEUS (JESUS).
Ele é amor e não quer que ninguém se sinta culpado por doença alguma.
Eu concordo em, quase, tudo com vc!
Deus é muito mais que nós. Do que somos e do que pensamos.
Existe muita hipocrisia e muitos pensam que enganam a DEus.
Se aproveitam da fragilidade humana para influenciar e te-los presos a seu favor!
Enfim, paro por aqui porque as palavras vão surgindo...
Belo texto, coerente.
bjs e felicidades!!!